THERE'S NOTHING YOU CAN MAKE THAT CAN'T BE MADE.

THERE'S NOTHING YOU CAN MAKE THAT CAN'T BE MADE.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

A gente insiste

A gente insiste.
Insiste na blusa desbotada que ganhou aos 17 anos. Insiste na calça 36 que já não entra mais - que, na verdade, empaca nas coxas.
Insiste em guardar notas fiscais de supermercado. Insiste em arquivar fotografias feias que nunca teremos coragem de publicar.
Insiste em manter na playlist músicas que já não são ouvidas há meses.
A gente insiste. E como insiste!
Insiste em quem machuca. Investe tempo pra se recuperar. Só pra poder se machucar outra vez.
E ainda assim: Insistir.
A gente insiste naquela amizade hipócrita que adora tecer comentários maldosos pelas nossas costas.
Insiste em fingir não saber.
Insiste naquela relação abusiva e mal resolvida. Insiste em crer que tudo logo pode melhorar.
Insiste que as pessoas podem mudar.
A gente insiste em usar uma cor que não nos cai bem. Insiste em forjar um sorriso quando a vontade é chorar.
Insiste num curso que não quer mais frequentar.
A gente insiste na humilhação. Na dor. No peso. E quase sempre falta força para apenas abandonar e seguir. A gente insiste no mesmo assunto. Nas mesmas regras. Nas mesmas ideias.
Insiste num plano que já deu errado uma vez. Duas. Três.
Insiste nas lembranças que teimamos em não deixar pra trás.
Insiste e se apega a cada mísera tentativa.

A gente simplesmente aprende a insistir. Confundimos a incessante insistência com coragem, negando a nós mesmos o direito de sermos honestos com os outros e, em especial, conosco.
A gente desiste e se confronta depois com a recusa dessa desistência. Porque no final a gente insiste.

A gente sempre insiste.


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Os resumos diários das ligações noturnas

Você sabe que eu vou chegar em casa e contar detalhadamente sobre cada precioso minuto do meu dia.
Vou te falar sobre algum amigo com quem almocei, sobre alguma música que aprendi a tocar, sobre alguém de quem me lembrei.
Vou falar compulsivamente sobre as minhas percepções. Sobre a garota da agência bancária que insiste em demonstrar certa antipatia por mim, mesmo que eu não dê motivos pra isso.
Vou falar sobre a infecção no ouvido de um dos meus bichos de estimação. Vou comentar sobre o elogio que a balconista da padaria fez à minha maquiagem, ou sobre a frustração que um comentário malicioso e mal colocado provocou em mim.
Vou te contar sobre a cor de esmalte escolhida para o resto da semana. Vou mencionar a procrastinação do livro que eu ainda não tive coragem de finalizar.
Vou reclamar a sua falta. Te pedir pra voltar, pra me buscar, pra dormir no seu abraço.
Vou imitar uma criança, te chamando por apelidos que não ousamos dividir com o restante do mundo.

E você, mesmo enfadado, vai rir. Vai resumir o seu dia agitado e ouvir bem mais sobre o meu.
Vai assumir o quão vazio o outro lado da cama fica sem mim. Vai se deleitar com um leve ''eu te amo'' seguido de um ''boa noite'' ou um ''tenho pensado muito em você''.
Vai me responder com a mesma intensidade, e com o cuidado de quem sabe tanto sobre mim.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Sinal de fogo - Um conto sobre Bernardo

Bernardo sorriu no momento em pôs os olhos em Rafaela.

Ela lhe parecia encantadoramente perdida. Trazia consigo um brilho diferente de todo o resto.
Até as roupas que vestia lhe davam um toque peculiar, muito diferente de toda aquela maioria em meio ao bar cheio de luzes neon.
Ela lhe sorriu. E o coração de Bernardo saltou. Como se aquele pedido de "anexaxão à primeira vista" fosse um reconhecimento. Como se aquele sorriso, tão puramente ingênuo e leve, lhe chamasse da forma mais convidativa possível.

Sentou-se ao lado dela. Lhe fez perguntas breves, perguntas estas que demonstravam total interesse em sua vida. E em mais de meia hora dividiam a mesma cerveja.
Ela, que já lhe parecia ligeiramente alterada pelas bebidas que tomara, agora o olhava de forma instintiva.
Lhe contara sobre o fim recente de um grande amor e, sentindo as mãos de Bernardo em seu rosto, virou-se para não permitir o que viria a ser o primeiro beijo.
Desculpou-se, meio sem jeito. Bernardo riu, fingindo parecer ofendido. O sorriso dela o fascinava e o intrigava. Como poderia ter se apaixonado tão rápido por alguém que acabara de conhecer? Alguém que, de fato, não estava em seus planos.
No ambiente do bar, a música "Signal Fire" de Snow Patrol embalava toda a conversa dos dois. E era exatamente o que lhe parecia. Ela lhe parecia um sinal. Um lindo e extasiante sinal de fogo.
De um fogo que viria a consumir seu peito e lhe inquietar o sono.

Bernardo chegara ao bar na intenção de conquistar de vez uma antiga paixão mal resolvida, e Rafaela surgira parecendo mudar toda a sua convicção inicial.
Já ao fim da noite, ela se dirigiu a pia do banheiro do bar. Lavou as mãos, molhou bem os pulsos e a nuca. Olhei-se no espelho e perguntou-se: O que há de tão lindo no sorriso desse rapaz, afinal?
Não compreendia o por quê de estar há horas tão vidrada naquele par de olhos azuis esverdeados. Confundia-se e Bernardo certamente notara essa confusão.
Ele era doce. E essa era a doçura que ela sentia faltar em sua vida. Ou, ao menos sentia ter pedido meses antes.
Foi caminhando em direção a ele. E sorriu.
Bernardo perguntou-lhe se ela se sentia bem. Ela afirmou que sim. De um jeito meigo, olhou-o nos olhos.

- Soube que hoje é a sua comemoração de aniversário. Desculpe ser uma penetra na sua festa.
- Você não é uma penetra. É minha convidada.

Bernardo abaixou-se - por ser consideravelmente mais alto que Rafaela -  e sutilmente lhe beijou. Ela correspondeu de forma intensa. Houve a primeira conexão.
E nos próximos meses, Rafaela se tornaria a salvação e a perdição de Bernardo.
Ambos se tornariam parte importante da vida um do outro. Mas, naquele momento, não faziam ideia do que se seguiria.

Naquele momento, ela era apenas o seu mais bonito sinal de fogo.